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quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Pirarucu, o cobiçado bacalhau da Amazônia


Manejo de pirarucus em lagos é a nova aposta para o desenvolvimento econômico de comunidades indígenas e pescadores.

RIO BRANCO – Silêncio no lago Orelha, na Terra Indígena Kaxinawá, em Feijó (AC). Apenas os ruídos dos remos rasgando as águas calmas. Paciência é a virtude essencial para a pesca do pirarucu, peixe considerado o bacalhau da Amazônia, que chega a pesar mais de 200 quilos, e é esperto. Muito esperto. Não gosta de barulho e percebe fácil a intenção daquele arpão apontado para ele. Do pescador, além da calma em esperar, são exigidas também a força, habilidade com arpão e o pleno conhecimento da rotina do peixe: quanto tempo leva para respirar, onde se esconde, e suas estratégias de sobrevivência.

A pesca manejada em lagos acreanos é algo novo, mas que se apresenta como alternativa econômica para populações tradicionais da floresta, incluindo os índios Kaxinawá, que iniciaram o manejo em lagos ao longo do rio Envira este ano.

O manejo é novo. Mas a cultura do consumo da carne do pirarucu, a existência dele nos lagos e o conflito entre os pescadores e a lei ambiental são hábitos velhos. O que o manejo muda então? A resposta vem do consultor da WWF que acompanha o processo no Acre: "Muda a consciência do pescador. Antes havia um conflito entre pescadores e ribeirinhos sobre a pesca do peixe, que é proibida por lei a não ser em unidades de conservação e uso sustentável e áreas com acordo de pesca", explica Marcelo Crossa.

O projeto de manejo de pesca de pirarucu é realizado em uma parceria do Governo do Estado, por meio da Secretaria de Extrativismo e Produção Familiar, a Ong WWF, as colônias de pescadores e as prefeituras. Os acordos de pesca são um passo importante. Neles os pescadores assumem o compromisso de respeitar os limites da natureza em troca da garantia perenidade.

O manejo, aliado aos acordos, garantem a proteção da área, que fica fechada até a avaliação de técnica – a etapa de contagem dos peixes – para que sejam relatados quantos animais o lago possui e quantos podem ser pescados de forma a respeitar a legislação. Pela lei, apenas os peixes com mais de 1,5 metro inteiros ou 1,2 metro de manta podem ser retirados da água e comercializados. Cada peixe leva, em média, seis anos para atingir a média para comercialização. Em geral são pescados 30% da população adulta de cada lago.
acre270809e "A comunidade faz parte do processo, pois fica responsável por limitar o acesso às áreas de manejo, garantindo a preservação dos espaços e dos peixes"

"A questão do manejo não é apenas para recuperação dos recursos naturais – um ganho que ele traz. Há um benefício social por trás. A ideia é retirar os pescadores da informalidade e colocá-los em grupos de manejo. Em Feijó já somam dez grupos e seis lagos manejados. O trabalho também é realizado em Manoel Urbano, município pioneiro, e está chegando a Tarauacá", acrescenta o consultor.

Além da questão da renda, o manejo também é importante por mudar a consciência ambiental das comunidades envolvidas. "Antes o pirarucu era pescado ainda filhote, capturavam a cria. Hoje ele é pescado de forma adequada, respeitando a legislação sobre o tamanho dos peixes", explica Crossa.

O coordenador da Seção de Manejo de Lagos da Secretaria de Extrativismo e Produção Familiar (Seaprof), Carlos Leopoldo, ressalta que o objetivo do Governo do Estado, principal investidor do projeto de manejo de pirarucu, é melhorar a qualidade de vida dos pescadores profissionais, gerando melhoria na renda das famílias.

As primeiras duas toneladas de peixe pescado nos seis lagos manejados em Feijó foram consumidas no Festival do Açaí. A estimativa é de que sejam pescadas seis toneladas no município. O manejo do peixe também abasteceu o Festival do Pirarucu, em Manoel Urbano.

União que faz a diferença

Outra proposta do manejo é recuperar a população de pirarucus nos rios, oferecendo uso racional do recurso. "Ganha a natureza e ganha a comunidade. O pirarucu é uma alternativa econômica para os pescadores e indígenas que oferece um grau de controle diferente de outras espécies de peixe. É como um gado, você pode contar, saber quantos vai pescar, que tamanho estão", explica Crossa.

O tamanho dos peixes acreanos também chama atenção. Chegam a medir 2,6 m, o que não é visto em outros estados. Segundo o consultor do WWF, o fato pode ser explicado pela falta de pressão da pesca.

O manejo do pirarucu no Acre tem chamado a atenção do consultor do WWF, que mora no Uruguai e presta consultoria para vários estados brasileiros, incluindo Amazonas e Amapá.

"O nível de entrosamento entre o Governo do Estado, através da Seaprof, e os demais atores envolvidos no processo é algo que faz a coisa fluir e falta em outros estados. A união entre Governo, colônias de pescadores, WWF, prefeitura de Feijó vai fazer diferença na hora de medir os resultados", disse Crossa.

Mudança de hábitos

Para introduzir o manejo foram necessárias algumas medidas. Os pescadores não tinham o conhecimento sobre as técnicas de pesca do pirarucu - contagem dos peixes, uso do arpão. "Nós não tínhamos experiência, usávamos malhadeiras erradas, perdíamos o peixe. Agora nossa intenção é atender a legislação e preservar os lagos para ter sempre o recurso disponível. O mais difícil é o deslocamento até a cidade", comenta o pescador Raimundo Rodrigues Costa, que tem 28 anos de profissão.

Para introduzir as novas técnicas de pesca do pirarucu o WWF e a Seaprof trouxeram de Santarém dois pescadores profissionais com bastante experiência no manejo do peixe. O intercambio entre os pescadores também foi realizado em Manoel Urbano. “A pesca não é difícil, basta prestar atenção nos hábitos do peixe e ter paciência. O pirarucu é como um cachorrinho, quando ele está no arpão você leva para onde quiser”, disse Francisco da Silva, o Groti, um dos pescadores de fora.

Também foram repassados aos pescadores as técnicas para o tratamento do peixe, que inclui o salgamento e o transporte. As escamas também podem ser aproveitadas para o artesanato, realidade mais consolidada em Manoel Urbano, onde o projeto iniciou.

Segurança alimentar nas aldeias e áreas tradicionais

Um termo que vem sendo bastante empregado e que virou política de governo é a segurança alimentar. O manejo de pirarucus em lagos também integra o Programa de Segurança Alimentar desenvolvido pelo Governo do Estado, à medida que garante proteína animal na dieta alimentar de índios, pescadores e ribeirinhos.

Faz parte do programa, desenvolvido principalmente em Zonas de Atendimento Prioritário (ZAPs) desenvolver com as comunidades roçados sustentáveis de grãos e mandioca em áreas cultivadas com o uso aliado da mucuna, uma leguminosa que traz inúmeros benefícios ambientais.

"Há muito mais por trás do manejo do pirarucu. A idéia é trazer a proteína animal do peixe, aliada a hortaliças e grãos para garantir variedade e qualidade nutricional. Com isto temos a segurança alimentar, que é, na verdade uma alimentação saudável", explica o Secretário de Extrativismo e Produção Familiar, Nilton Cosson.

O programa começou a ser desenvolvido em áreas de difícil acesso, de incidência das estradas ou rios. Entre as comunidades a idéia é garantir, além da agricultura de subsistência com os roçados sustentáveis, um pequeno excedente que possa ser comercializado e garanta fonte de renda extra.

Já na área indígena em que o pirarucu é manejado, houve um processo de inclusão em que foi discutida com a comunidade quais processos produtivos seriam desenvolvidos.

Houve todo um cuidado para que eles pudessem ser inseridos na questão do manejo do programa de segurança alimentar, com respeito à cultura deles. Os roçados são uma garantia alimentar, uma prática milenar entre eles, e o manejo nos lagos é uma alternativa que não vem para agredir, vem para somar e respeitar. "Queríamos que eles se sentissem, desde o início, parte do processo, porque são eles que vão tocar o projeto e precisam caminhar com as próprias pernas a partir de um determinado momento", acrescenta Cosson.

Jogo do ganha-ganha

Com o manejo do pirarucu em lagos todos saem ganhando: a natureza, que tem sua fauna preservada e a comunidade, que encontra mais uma fonte de renda.

"O manejo garante o monitoramento da espécie, a conscientização da comunidade – que aprende a respeitar a época certa para a pesca. A cultura do consumo da carne já existia, mas não havia um controle" avalia o prefeito de Feijó, um dos grandes incentivadores do manejo como alternativa de renda para o município, que tem menos de 40 mil habitantes.
Outra vantagem trazida pelo manejo é o lucro para o pescador, que vai melhorar, pois a figura do atravessador será extinta. É o explica o oceanógrafo Marcelo Crossa. A associação de pescadores, que assina o acordo de pesca, se encarrega de abastecer restaurantes e vender o excedente da produção.

O território dos Kaxinawá abriga menos de 600 índios, divididos em várias aldeias. As duas principais fazem parte do manejo e oito índios estão envolvidos. Na comunidade, as tarefas são divididas, e o lucro obtido numa atividade produtiva beneficia a todos da aldeia.

"O projeto foi discutido na comunidade, que achou importante e aceitou o desafio. É uma fonte de renda que vai ajudar nosso povo. Antes o pirarucu não era pescado, não havia conhecimento para pescar nem o equipamento necessário", disse o cacique Gilberto Kaxinawá.

Uma das vantagens do manejo em terras indígenas é a proteção dos lagos, garantida pelos próprios indígenas, que vigiam as áreas para não permitir a entrada de pescadores.

Nas duas comunidades indígenas Kaxinawá em que o manejo vem sendo desenvolvido os índios estão aprendendo novas técnicas para a pesca do pirarucu. No lugar das malhadeiras, os arpões. E não é só manejar o instrumento. É preciso aprender a diferenciar os peixes pelo tamanho, pelo ronco, pelas escamas. Com o tempo saberão, de olho, qual o tamanho do animal, se está de acordo com o permitido pela legislação, onde o peixe se esconde, como bóia para respirar se souber que está sendo expiado.

São técnicas que o pescador vai adquirir com o tempo. E para melhorar o aprendizado, preocupado em introduzir a nova atividade na rotina da aldeia, o cacique Manoel Kaxinawá decidiu trocar as crianças de lugar. Ao invés da sala de aula, a beira do lago. Todas foram observar o ritual da pesca. A iniciativa faz parte da educação escolar indígena e do currículo diferenciado que é utilizado nas aldeias. Também faz parte do ensino a cultura, a língua, rituais e costumes do povo e as aulas acontecem assim: nas caçadas, fabricação de artesanatos, pinturas corporais.

"O currículo escolar da educação indígena é diferenciado. Faz parte da grade também o dia-a-dia nas aldeias, nossos costumes, o artesanato, a caça. É importante que eles aprendam desde já sobre o pirarucu", enfatizou.

Bacalhau da Amazônia

O pirarucu (Arapaima gigas) é um peixe endêmico da região amazônica. De grande porte, é um dos maiores peixes de água doce do mundo. Pode crescer até três metros e pesar 250 quilos. A origem de seu nome é indígena: pira, "peixe" e urucum, "vermelho", devido a cor de sua cauda. O peixe vive em lagos e rios e águas calmas.

Na mitologia indígena, Pirarucu era um índio que pertencia a tribo dos uaiás, que habitava as planícies do Sudoeste da Amazônia. Ele era um bravo guerreiro, mas tinha um coração perverso, mesmo sendo filho de Pindarô, um homem de bom coração e também chefe da tribo.

Pirarucu era cheio de vaidades, egoísmo e excessivamente orgulhoso de seu poder. Um dia, enquanto seu pai fazia uma visita amigável a tribos vizinhas, Pirarucu se aproveitou da ocasião para tomar como refém índios da aldeia e executá-los sem nenhum motivo.
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FONTE : Tatiana Campos, da Agência Amazonia (Envolverde/Agência Amazônia)
Crédito da imagem: Ângela Peres

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